Dizem que temos de ter sucesso, temos de ter dinheiro, temos de ter relacionamento, temos de ter emprego, temos de ter carros, temos de ter casas, temos de ter posição social, temos de ter isso e aquilo. É o que a sociedade e os meios de comunicação nos dizem.
A pergunta que se faz é: será que tudo isso não é uma farsa para nos forçar a consumir, a imitar, a se subjugar, a se fazer de determinado jeito, a votar em determinada pessoa, a contribuir para o lucro deste ou daquele etc. a se curvar diante de um deus que não sabemos nem o que ou quem é?
Não, a vida não é uma rinha de cães devorando uns aos outros, a vida não é uma luta na qual temos obrigação de conseguir conquistas que a sociedade nos impõe, que são, quase que na sua totalidade vulgares e vazias. Ainda que as conquistássemos isso não nos conduziria a mais do que a um vazio sem sentido.
A vida é para ser vivida de forma construtiva, de forma virtuosa, de forma produtiva e de forma a trazer para o mundo uma contribuição positiva. As obrigações vulgares que nos são impostas pela sociedade, quase sempre são para a exclusão e para a impossibilidade.
Porém, o nosso ideal não deve depender daquelas conquistas vulgares, mas de uma conquista básica e que está ao alcance de todos, a saber, a consciência limpa de ter dado o nosso melhor, de nos ter esforçado ao máximo pelo nosso resultado, independente do que tenhamos alcançado, se muito ou se pouco, porém, deitando e dormindo tranquilo à noite.
Na música não é diferente, precisamos nos desligar da vulgaridade de tocar melhor ou pior do que este ou aquele, tocar como este ou aquele, igualar a esta ou aquela conquista, alcançar isso ou aquilo. Muitos estão numa terrível e árdua competição por posicionamentos no meio musical, não há nada mais destrutivo para o aprendizado do saxofone do que isso.
Sim, galgar conquistas é importante na música, mas muito mais importante do que isso é ter a alegria de poder contar com o saxofone no momento em que vamos espairecer de uma vida agitada, de uma frustração, de uma alegria exacerbada e encontrar nisso algo de bom ao qual possamos nos apoiar, viajar, e voar.
O que quero dizer com isso, é que ao tocar saxofone não devemos nos impôr obrigações vulgares como alcançar posições numa competição insana entre os seus pares, ou ainda conseguir tocar como tal ou qual, a verdadeira essência do aprendizado de saxofone não é essa, mas a alegria de tocar de se expressar, e de encontrar nisso um porto seguro.
O relativo ao outro na música é sempre prejudicial, a comparação traz a frustração, a frustração traz a cobrança, a cobrança traz o sofrimento, e o sofrimento a improdutividade, e posterior abandono da busca.
O sax no nosso aprendizado deve ser um ponto absoluto em si mesmo, no sentido de que não deve ser fonte de comparação, de competição, de uma escravidão por tocar como tal ou qual, ou melhor do que tal ou qual. Não é esse o fundamento de se estudar saxofone, isso é sim uma escravidão sem sentido que certamente acabará mal.
Todos nós, por mais que não desejemos que as coisas sejam assim, temos essa tendência relativa de nos comparar, de nos pôr em medida diante dos demais. A primeira coisa que sentimos é uma cobrança exacerbada relativa a nossos resultados, a nosso tempo de estudo, a nossa capacidade de execução, ao nosso suposto talento, e até mesmo à efetividade daquilo que fazemos no dia a dia do sax.
Nesse prisma o saxofone deixa de ser algo prazeroso, um refúgio para a dor inevitável do dia a dia, para se transformar num fardo, num peso, numa dor, num flagelo que nos tortura a cada nota, a cada erro, a cada deslize, e a cada observação que fazemos do nosso redor, pois na nossa cabeça tudo e todos estão à frente, e somente nós é que ficamos para trás.
O que podemos fazer diante de uma situação de tamanho sofrimento? O saxofone que era para ser um prazer e um descanso, transforma-se numa dor muitíssimo maior senão agravante de tudo o que temos na vida como um todo, ou seja, transformamos nosso estudo musical em algo que nos atrapalha e atrasa, isso é terrível, isso nos conduz à desistência, à tristeza, e talvez até a um apagar interior da chama do sax.
Entendam que a saída para esse círculo vicioso, onde uma coisa puxa a outra: a vida traz a dor, que traz o sax, que traz a dor, que traz a vida e tudo é sofrimento, cobrança, obrigação, pressão, frustração e desejo de parar, de se lançar em outra atividade, de ir para uma outra galáxia (talvez Orion) onde não tenhamos mais notícias de nada que está aqui; a saída para isso tudo passa por um desvio de olhar.
Devemos sim desviar o olhar das pessoas ao nosso redor, da comparação com os outros, da exigência de alguns, da crítica, da violência verbal e física daqueles que nada fazem senão trazer à luz um mundo que não passa de uma auto afirmação de si numa lei de bestas feras, onde fala mais alto quem late mais alto. Esse mundo precisa morrer, e o único meio de fazer isso é conceder uma violenta inexistência a ele, desviando dele o olhar.
Entrar no mundo do sax deve ser o mesmo que esquecer desse fator relativo da competição, da comparação, da exigência, da obrigação, pois nisso está a dor que queremos evitar, é no sax que buscamos o alívio para essa opressão que estamos sentindo em nosso viver, e se o sax se transforma numa opressão ainda maior, de que vale partir para essa conquista?
Desviar o olhar desse mundo de obrigações comparativas, passar a pensar a respeito de fatores absolutos, como o vencer a si, e não ao outro, sim, vencer a si mesmo, numa busca constante de superação que não considera uma competição com o que está ao redor, mas sim consigo mesmo, na comemoração irrestrita de um superar-se a cada instante naquilo que o sax representa em nossa vida.
No momento em que desviamos o olhar deste mundo de competição e comparação para nossa capacidade de superar a si mesmos, e paramos de contemplar a rinha vulgar e grotesca na qual querem nos meter, seja na vida ou até mesmo no mundo da música, encontraremos uma paz que nos permitirá com certeza viver a vida, e viver o sax de maneira mais tranquila, produtiva, construtiva e pacífica.
Seja pela mídia, pela propaganda, pela conversa dos círculos das más companhias, dos valores vulgares de uma sociedade que mede a si mesma pela conta bancária, pela quantidade de carros, ou casas, ou qualquer um desses valores que se considerados como fonte de vida se transformam na miséria certa de uma alma que por mais vencedora que seja nessa empreitada sempre será derrotada interiormente.
Não que ter carros e casas seja um pecado em si mesmo, muito pelo contrário, precisamos viver, e a vida deve ser abundante, porém, no momento que fazemos disso o sentido da vida estamos nos prendendo a uma vulgaridade sem tamanho cujo fim é o desastre do vazio e da ausência de sentido em tudo o que somos e representamos.
Ao estudar um saxofone não deveríamos nos medir pelos títulos que porventura conquistamos, não deveríamos nos deixar levar pela facilidade ou dificuldade que manifestamos nesta ou naquela área da música, mas sim nos prender ao mundo absoluto (que não compara, que não compete) da contemplação serena de um momento de liberdade, no qual alcançamos sim um nível musical cada vez maior, porém, no qual esse nível não é importante, e sim o esforço máximo que nos traz a consciência tranquila de estarmos dando o nosso melhor em tudo o que fazemos.
O saxofone não pode ser um flagelo, uma competição, uma comparação opressora, uma cobrança desumana, uma obrigação sem fim, mas sim um prazer, uma alegria, um sentimento de realização, a liberdade. É necessário constatar o fato de que os primeiros sentimentos são todos relativos à sociedade, na competição e comparação, e os segundos absolutos em si mesmos quando contemplamos o mundo interior que se volta pra a vitória sobre si, e não sobre o outro.
É esse o motivo, ainda que inconsciente, que faz com que muitos venham a sofrer na busca do aprimoramento musical, é esse o motivo, ainda que imperceptível, que nos traz um sentimento de dor e não de prazer naquilo que chamamos viver o saxofone. É preciso deixar esse mundo relativo e vulgar da comparação, da obrigação e da competição de lado, e encontrar no sax o verdadeiro significado absoluto da liberdade.
Daniel Vissotto