Percepção sem Medo

Quando o assunto é percepção musical, muita gente, muita gente mesmo, dá um passo para trás.

Alguns, que talvez possuam facilidade para tanto, usam isso para intimidar os demais. A idéia sempre é se isolar no privilégio e excluir os que não conseguem, assustar o máximo possível, afastar o quanto podem, impressionando com capacidades que para muitos são tremendamente esotéricas e inatingíveis.

Lembro-me de grupos de músicos com os quais toquei que se orgulhavam de não saber ler partituras. Como se isso fosse um trunfo, uma vantagem. Aqui a gente toca de ouvido, diziam com o tom de alguém que está acima, o tom de alguém que é privilegiado, uma certa raça superior de músicos que não precisam de partitura. A partitura para muitos é algo negativo, há preconceito quanto a ela em muitos meios.

E se você precisa de uma partitura em meio a esses músicos, você é travado, é bitolado, é limitado, é surdo etc. Isso quando não é puramente excluído, esquecido, e até mesmo ridicularizado. A tendência a se isolar no privilégio é uma tendência do humano, na verdade, uma maldade, e a maldade que existe nisso é algo de muito grande monta, provocando sofrimento em muita gente que tem o sonho de tocar.

Infelizmente o mundo não é feito apenas de pessoas sinceras e boas, e o meio musical, como muitos sabem é um meio onde a vaidade rola solta, e a vaidade não é o melhor dos sentimentos quando se trata de ajudar e incluir as pessoas. A vaidade leva ao desejo de excluir, e essa coisa de tirar músicas de ouvido é usada e abusada para esse fim.

Certa vez toquei com um pianista em um evento importante, e imediatamente ele me disse que queria tocar sem partituras. Na época eu aceitei, e falei, vamos em frente. Aos poucos fui percebendo que ele me acompanhava com má intenção, me deslocava de suas harmonias, que não eram incorretas, mas que me dificultavam em muito, por serem de um grau alternativo muito grande, como que construídas para me tirar da música.

Na época eu não tinha todo o treino do mundo em relação a tirar músicas de ouvido, e ainda acredito que muita coisa me falta nesse sentido, sempre temos o que aprender. Porém, fui me sentindo cada vez mais mal ao tocar, de repente, fui me sentindo cada vez mais desanimado, sem prazer de tocar, até me concluir um ser inferior musicalmente, alguém que não tinha capacidade para isso, e nem sabia por quê. Foi depois, vendo as gravações em vídeo do evento que percebi o que de fato aconteceu.

É, o mundo musical tem dessas coisas, gente bem intencionada e mal intencionada tem em toda a parte, não podemos romantizar a coisa a ponto de não nos conscientizar disso. Quando terminou aquele evento eu estava pensando em desistir do saxofone, embora soubesse, no fundo, no fundo, que havia alguma coisa errada e que a culpa não era minha.

O que quero dizer é que isso pode acontecer com qualquer um, inclusive comigo, todos nós estamos sujeitos a essa questão, e precisamos nos conscientizar do fato de que a percepção musical é algo que assusta a muita gente. No entanto, ninguém consegue expandir seus limites musicalmente se não enfrentar os próprios fantasmas, temos de encarar o estudo de percepção com franqueza, com honestidade, com clareza, a ponto de enfrentarmos nossas dificuldades, sejam elas quais forem, pois só assim conseguiremos atingir nossos objetivos.

Há teorias que dizem que, quando expomos nossos fantasmas de maneira completa diante de nossos olhos, perdemos muito do medo que possuímos deles. Não podemos esconder de nós mesmos nossas dificuldades, pois é por meio dessa exposição que iremos, aos poucos, expandir nossos limites, e vencer nossos medos, alcançando assim, pouco a pouco, a habilidade que queremos encontrar na música, e isso é muito verdadeiro no que diz respeito ao estudo da percepção musical.

De fato, não devemos nos expor a gente mal intencionada, mas quando o objetivo único é expandir nossas capacidades e quando isso é de fato legítimo, seja sozinho ou com companhia, precisamos colocar pra fora a dificuldade que possuímos, pois sem isso jamais conseguiremos vencer o que nos assusta, pelo contrário, seremos sufocados por isso sem sequer ter noção do que se trata, e antes mesmo que tentemos, já estaremos derrotados.

Há estudos que comprovam que a percepção musical é algo que se desenvolve, principalmente no que toca ao ouvido relativo, aquele que não percebe as notas em si mesmas, mas a relação que há entre elas, a proporção dos intervalos, por exemplo. Quanto mais se pratica, maior a capacidade de definir detalhes a respeito dos sons, e mais fácil se torna a capacidade de reconhecer e os identificar.

Eu sou uma prova viva disso, no início, quando comecei no piano e era muito novo, não conseguia tirar músicas de ouvido, aos poucos fui praticando isso, e desenvolvendo essa habilidade, tudo o que se pratica se desenvolve, ainda que não consigamos atingir um ouvido absoluto e final, sempre desenvolveremos algo, sempre nos aproximaremos mais e mais de nossos objetivos, e esse desenvolvimento, seja ele rápido ou lento, seja ele brutal ou tímido, não nos pode ser negado, tem sempre de ser aproveitado.

Outra coisa que posso dizer em favor dessa tese é que dou aulas a mais de dez anos, e dentro desses dez anos de aulas eu já vi muita gente sair de uma surdez quase que absoluta para uma percepção muito respeitável, de forma que posso garantir por experiência própria que todos podem desenvolver essa habilidade, uns mais rápido do que outros, uns chegando mais longe do que outros, mas todos, sem exceção têm condições de atingir um nível satisfatório, passível de nos fazer tocar de ouvido sem maiores problemas.

Nem é necessário dizer que há a necessidade de muita honestidade para consigo mesmo nesse caminho, ninguém que mente para si chegará a conseguir alguma coisa. É preciso ser franco, assumir a dificuldade sem traumas, acreditar que é possível, e praticar muito, mas muito mesmo todas as técnicas necessárias para o desenvolvimento da percepção musical.

Não se pode esconder de si mesmo as próprias dificuldades, há muitos que evitam esse estudo simplesmente porque têm medo de encarar o limite. O limite está a um passo do desconhecido, e o desconhecido é o fim do limite, porém, muitos temem o desconhecido, ou ainda temem encontrar um limite intransponível. Talvez por isso, sequer se aproximam de seus limites, inventam mil e uma desculpas para evitar os estudos de percepção, quando confrontados com isso eles fazem tudo, menos enfrentar de frente e com franqueza suas dificuldades. Assim não conseguiremos mesmo nos desenvolver.

Não é mascarando que conseguimos tudo, ou que não temos tempo para conseguir, ou que não queremos estudar, ou qualquer outro subterfúgio que encontrarmos para não encarar nossas dificuldades que conseguiremos expandir nossas capacidades. É importante desnudar o fantasma, vê-lo em sua inteireza, sem sofrimento, sem trauma, sem medo, pois só assim saberemos com o que estamos lidando e poderemos, de alguma forma, seja ela qual for, vencer nossos impedimentos musicais. O fantasma deixa de ser fantasma quando o encaramos sem medo, de frente, e em sua inteireza, esse é o único caminho da vitória.

Não tocarei aqui nas técnicas usadas para enfrentar a dificuldade de se tirar músicas de ouvido, mas sim nos impedimentos que estão diante de nós quando nos pomos a estudar esse tipo de estudo, coisa que devemos vencer dentro de nós, em primeiro plano, isso se queremos de fato vencer essas dificuldades para fora de nós e atingir essa capacidade na música, no sax, e na vida como um todo.

Falaremos mais propriamente das técnicas usadas para desenvolver o ouvido e a percepção nos próximos posts aqui do blog, porém, o que eu queria frisar neste texto, e o que eu acredito que coloquei em evidência de maneira muito bem colocada, é que devemos reconhecer nossas dificuldades e facilidades com a mais perfeita honestidade, sem medo, na certeza de que, o que quer que consigamos com isso será sempre maior do que o que já temos, e isso mais uma vez sempre é lucro para todos nós.

O caminho para expandir suas habilidades musicais perceptivas existe, é real, e certamente pode acontecer com qualquer um. Porém, devemos tomar cuidado com o que fazemos e diante de quem fazemos. Encontrando uma ajuda correta nesse sentido, uma pessoa que possa nos orientar e que esteja bem intencionada, e sendo honestos conosco mesmos, certamente encontraremos também a saída para nossos impedimentos e dificuldades, e venceremos sobremaneira tudo aquilo que nos assusta provando por a mais b que aqueles que nos excluíram em algum momento por conta disso estavam errados, e de fato estão.

A percepção sempre se desenvolve, talvez mais lentamente, talvez mais rapidamente, porém, sempre é possível atingir um ponto além, isso é garantido. Portanto, percamos o medo e encaremos o fantasma. Lembre-se, fantasmas não existem, basta que não acreditemos neles.

Daniel Vissotto

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