O que seria errar em música? Falando de música popular, o que seria o erro para o músico que quer se expressar musicalmente? Afinal de contas Miles Davis já determinou que “os erros não existem” e que não devemos temê-los.
Muitos confundem as coisas e pensam que a teoria musical é o que determina o que são erros e acertos para o músico, no entanto, a verdade é que a coisa se dá de forma contrária.
De fato é da vida e do uso dos músicos que surge a teorização da música, e não da teorização que surge a vida e o uso dos músicos, é um erro pensar de maneira diferente.
A Arte Expressa a Vida
A arte expressa a vida, e deve se adequar a esta para poder expressá-la, e não o contrário. É no momento que vivemos, sofremos, sentimos alegria, dor, que surge a arte, e não numa teoria morta.
Nada contra a teorização da música, é necessária e certamente nos ajuda em todos os sentidos a compreender o que a vida nos traz, porém, não é ela a origem, e nem é dela o mando naquilo que acontece artisticamente.
Não são raros os músicos que surgem naturalmente, por força de um impulso pessoal, e que nunca tiveram contato com a teorização musical que tocam de tudo e tocam muito bem.
Esses casos, muitas das vezes, querem ter contato em algum momento com a teoria, porém, não raramente ao fazê-lo acabam por limitar e adulterar aquilo que produziam antes.
O que ocorre é que no momento em que tocavam sem teoria conseguiam obter um resultado musical muitíssimo superior ao do momento em que foram apresentados à teorização.
O fenômeno ocorre porque muitos confundem a teoria como um fator limitante para o músico, o que de fato jamais deveria ser, pois o músico deve ter mando sobre a teoria e não o contrário.
O objetivo de se conhecer a teoria, sempre foi e sempre será ir até o fim desse edifício teórico, conhecer de tudo, e por fim, após conhecer e executar tudo à la carte, conseguir quebrar tudo o que se aprendeu.
O Dedo em Riste
É isso que muitos não compreendem, com o dedo em riste apontam para este ou aquele e dizem: é errado, não pode ser assim.
Querer delimitar a arte pela teoria é o mesmo que querer delimitar a vida e suas infinitas contingências e possibilidades.
Sempre surge algo novo, o edifício teórico é apenas uma sombra, um simulacro que procura com todas as suas evidentes limitações expressar a vida.
Mas a vida tem o mando, as coisas primeiro surgem na vida, depois na teoria, e a vida tem de ter a liberdade para acontecer.
Engessar a vida pela teoria é como abortar um mundo de possibilidades infinitas antes que ele possa se dar.
A teoria vem para dar apoio, para trazer compreensibilidade, para sistematizar o que já está, para facilitar o ensino, para registrar o que ocorre.
Porém, temos de saber que a música é escrava da vida, a arte expressa a existência humana, e nem tudo o que presenciamos no mundo real é compreensibilidade.
A verdade é que não há, mesmo que se queira, uma teoria científica sequer que possa abarcar todos os fenômenos da vida.
Mais, não há uma teoria científica qualquer que possa ser considerada definitiva, ou ainda que possua unanimidade.
Se no que chamamos de ciência as coisas se dão desse jeito, imagine na arte! A arte não é a expressão de uma teoria, a arte é a expressão do choro, do medo, da idiossincrasia de cada um.
Mais do que isso a história mostra que a vida se transforma, os recursos de vida, de compreensão de acesso, são outros que tempos atrás.
Na época de Coltrane jamais se faria música em conjunto com um computador, hoje, isso é perfeitamente possível e mais presente do que se imagina nos dias de hoje.
Mas então, diante disso, o que poderíamos dizer que é o erro musical? O que poderíamos dizer que está errado musicalmente falando?
O Local Exato do Erro Musical
Dentro dessa concepção, fica difícil encontrar o local exato do erro na música popular, esta que é o fervilhar mais bruto da existência humana, sendo que na vivência do ser humano tudo é possível.
Grosso modo, sabendo que a teorização da arte descende da vida, e que na vida há a liberdade para que tudo possa ocorrer, porque de fato é o que ocorre, temos que o erro não existe.
Mais uma vez Miles Davis tem razão ao afirmar: “não temam os erros, eles não existem”. Ora, se tudo na vida é possível, e é, temos que na música tudo é possível, e sendo assim não há possibilidade para o erro.
Ou melhor, o erro faz parte da música, errar na música seria uma dessas coisas possíveis, errar não seria, estritamente falando, um erro.
A resposta para esse dilema vem pela concepção fundamental de intenção musical. O que seria intenção musical nesse contexto?
A intenção, para o solista, na improvisação e na interpretação é quase tudo, chego a dizer até mesmo que é tudo. Tudo passa pela intenção, sem intenção não há música.
Primeiro de tudo o músico deve ter uma intenção clara de mensagem, ainda que essa mensagem não seja transmitir mensagem nenhuma, ainda assim será uma mensagem.
Depois disso ele deve ter uma intenção clara e distinta de concepção musical. Ou seja, deve conceber uma forma de expressão própria, característica de seu juízo próprio, que se alinhe ao estilo no qual pretende falar.
Por fim, o músico deve ter a clara intenção das formas musicais por meio das quais quer se expressar, os desenhos, as estruturas, as articulações, as acentuações etc.
Como falei tudo passa pela intenção. O erro não seria um fator absoluto: você tocou C e a nota é E, isso não é um erro, desde que tenha a intenção de tocar E no lugar de C independente de tudo.
De forma que, segundo essa concepção, tudo ainda continua sendo válido na música, porém, não sem antes passar pelo crivo da intenção do músico que se expressa.
Errar não é tocar C em lugar de E, errar é ter a intenção de tocar C e tocar E ao invés disso. E isso independentemente de tudo, inclusive de toda teorização musical.
Errar é Algo Relativo à Intenção
O que quero dizer é que o erro é relativo, não algo absoluto em função de uma teoria qualquer, mas relativo, acontecendo em relação à pura e bruta intenção musical do músico que se expressa, independente de tudo.
Digamos que o músico queira errar, e se ele erra nessa situação, isso não pode ser chamado de erro, mas de acerto, pois a intenção validou esse erro, a teoria se cala nesse momento, tem de se calar.
Mais do que nunca a teoria vem para ajudar, e não para limitar. É preciso ter essa consciência, o dedo em riste que, a uma distância quilométrica aponta para a expressão artística e diz: está errado, esse dedo deve se calar nesse momento.
Mas então a teoria para nada serve? Pelo contrário, a teoria deve ser estudada, é o edifício no qual tudo se constrói, é por meio dela que tomamos consciência de tudo o que ocorreu e ocorre na arte.
A teoria é a fonte da autoridade para errar. Por mais estranha que esta frase possa parecer, a verdade é que a teoria nos dá gabarito para que possamos transgredi-la.
Não há melhor caminho para a liberdade musical senão a teoria, pois por meio dela encontramos a intenção, e a autoridade para quebrar a teoria que aprendemos, tendo consciência do que estamos fazendo de fato.
E nada é mais musical do que a intenção com autoridade. Como disse Miles Davis, “não toque o que está lá, toque o que não está lá”.
Para quem quer conhecer mais formas musicais por meio das quais possa expressar sua intenção musical deixo aqui a possibilidade do e-book Escalas Maiores e Menores para Sax.
Um trabalho primoroso para todo músico que está entrando no mundo do sax e quer, de fato, ter sua intenção musical satisfeita.