Um dos maiores erros dos iniciantes é o de acreditar que seus estudos de saxofone são descartáveis.
Calma, eu explico: por descartável quero dizer aquilo que se estuda e depois que se joga fora como se, depois de dominado, não tivesse mais uso e nem precisasse mais ser desenvolvido.
Por exemplo, a escala natural é um dos primeiros exercícios que usamos no saxofone para abrir a tessitura do instrumento e explorar todas as regiões do sax, é um dos primeiros passos do iniciante.
Um erro muito comum dos aprendizes de sax é o de pensar que essa escala é algo que deve ser ultrapassado, a idéia é a de que a escala deve ser feita, e uma vez feita sem erros, não deve mais ser estudada, como se o estudo do saxofone fosse formado por fases, que se aprende, se passa, e se descarta.
“Ah, mas essa escala eu já fiz.” Essa é a fala comum. É óbvio que temos de evoluir, e não podemos ficar parados no tempo, é óbvio que devemos acoplar coisas novas ao que estamos estudando, porém, o que estudamos no passado não pode ser simplesmente jogado fora.
Exercícios, músicas, tudo o que fizemos no passado, devemos ter um cuidado especial com tudo isso, surge o conceito de reciclar conteúdo nos seus estudos de sax, precisamos compreender o motivo disso, e como ele funciona.
Quando era mais novo, em Tatuí fui chamado pelos alunos mais interessados para participar de um Workshop em São Paulo com um músico muitíssimo famoso do mundo da guitarra e da improvisação. Não vem ao caso dizer quem ele era neste momento, porém, era alguém reconhecido mundialmente.
Alugamos um carro coletivo e fomos todos para São Paulo. Quando lá chegamos, notei que houve uma grandiosa decepção da parte de todos. Esperavam meus colegas que este músico famoso falasse de escalas exóticas, mágicas mirabolantes em termos de harmonia, coisas novas, inéditas e até mesmo inacreditáveis. Mas não, ele falava no Workshop da progressão harmônica II V I, em especial da importância do modo dórico.
Ora, diziam todos, isso eu já sei, isso eu já faço, isso eu já domino, isso eu não quero saber. O que nem todos perceberam nesse workshop foi a lição que este guitarrista reconhecido nos deu, a saber, que no auge de sua jornada, o que ele julgou ser mais pertinente a ser explicado, seria o básico, o modo dórico, em meio a uma progressão II V I.
Para quem não sabe II V I é uma das progressões harmônicas mais comuns da música ocidental, de fato não há nenhuma novidade nela, é praticamente a primeira coisa que aprendemos quando começamos a improvisar no saxofone ou em qualquer instrumento.
Depois de muito meditar sobre o que se passou cheguei à conclusão de que havia algo a aprender no que nos tinha sido dito, e não era pouca coisa. A saber, que não há, no fundo, no fundo, uma diferença mirabolante, exótica, mágica em termos de conhecimento harmônico entre o instrumentista consagrado e o iniciante.
No fundo, no fundo, eles estudam as mesmas coisas, porém, o que o músico desenvolvido enxerga naquilo é muitíssimo mais do que o que o músico iniciante vê. De forma que ambos fazem a mesma coisa, só que um com infinitamente maior domínio do que o outro.
A música ocidental tem seus limites, ela não é um mundo de possibilidades infinitas. Ela possui um número de cartas limitadas, e até mesmo, pequeno, no sentido de que em uma única música se aprende coisas que irão servir para inúmeras músicas, querendo dizer que as situações harmônicas, rítmicas e melódicas se repetem muito na música ocidental, e não há muita novidade depois de um determinado estágio.
Aqui um parêntesis, me admira por exemplo ver o que uma musicista como Candy Dulfer, a saxofonista holandesa, faz com uma simples escala pentatônica, ao invés de um iniciante que vê poucas possibilidades nessa escala, Candy consegue, por meio dela, numa melodia simples, de harmonias simples, contar uma verdadeira Odisséia musical.
Precisamos entender que a grande diferença entre um músico experimentado e um músico que está começando não é o que ele está estudando, mas o que ele vê naquilo que ele estuda, o que ele expressa por meio daquilo que ele estuda, o grau de domínio e de produção que ele alcança por uma simples escala pentatônica que é tocada por todos, inclusive por iniciantes, porém, não, em definitivo, do mesmo modo.
Não é no conteúdo do estudo que as coisas mudam, é óbvio que músicos profissionais, que estão há longo tempo na estrada, possuem um número maior de recursos debaixo dos dedos, porém, não é isso que os diferencia de fato dos iniciantes. Pelo contrário, é a capacidade de fazer as mesmas coisas, com muito mais domínio, e muitíssimo maior grau de expressão musical.
Aquela mesma escala natural, na qual todos começam no saxofone, aqui, nas mãos desse músico maduro musicalmente, ganha um novo sentido, um sentido que não possui erro, não possui limite, não possui fim. A mesmíssima escala natural está presente nos seus improvisos, só que de forma tão expressiva, e com tanto domínio, que até parece uma coisa exótica de outro mundo, mas de fato, não é.
Quando cheguei em São Paulo com meus colegas de Tatuí para o workshop que falei, e vi um guitarrista amplamente reconhecido musicalmente falando sobre o modo dórico (o segundo modo da escala natural), como se isso fosse uma grande novidade, percebi que para ele, na visão dele, isso era de fato uma novidade.
Passaram-se os anos, passaram-se os estudos, e ele ainda estava estudando a escala natural no modo dórico, e enxergando coisas novas nessa escala, e ensinando isso como se fosse uma novidade, e era de fato. Sim as peças do jogo são poucas, mas as possibilidades de expressão que temos com elas, a partir de poucos detalhes de mudança, aí sim, são intermináveis.
Disso tiro a conclusão de que nada que estudamos no saxofone é descartável, no sentido de que devemos sempre, e sempre, reciclar, em alguma medida, o que estudamos no passado, o que dominamos no passado, pois sem isso, estaremos eternamente presos ao mesmo estágio de desenvolvimento.
Quero mostrar com toda essa argumentação que o desenvolvimento no saxofone e na música em geral, é cumulativo, aprendemos a acumular recursos, e não a descartar o que já fizemos. A mesma escala maior, ou seja, a escala natural que aprendemos no primeiro dia de aula, estará presente, sem dúvida alguma, na show que vai nos consagrar mundialmente um dia na música, só que nesse momento, veremos nela algo mais, e esse algo mais que vemos na mesmíssima escala maior é o que faz a diferença entre quem está começando e quem já tem bagagem.
Reciclar os estudos significa voltar atrás, refazer o que um dia fizemos, é lógico que teremos de fazer menos, pois já está propriamente debaixo de nossos dedos, mas de forma alguma deve ser desprezado, devemos continuar estudando a escala maior até o último dia de nossas vidas, devemos continuar fazendo notas longas, até o último dia de nossas vidas, estamos na verdade acumulando recursos em nosso arcabouço de domínio e não descartando para pegar coisas novas.
Foi quando percebi esse fator, ou seja, o fator cumulativo de todo estudo musical, que eu consegui entender o meio de evoluir de fato na música. Não devemos lançar no lixo o que já fizemos um dia no sax, antes devemos estar relembrando tudo, sempre, e acumulando um cada vez maior número de recursos de expressividade no sax.
Se aprendemos algo e descartamos, o que estamos fazendo de fato é permanecer no mesmo ponto na música, porém, se aprendemos e acumulamos, e fazemos cada vez melhor aquilo que um dia fizemos, isso nos fará evoluir de fato e progredir como temos de progredir para atingir um nível considerável no nosso instrumento.
Acima de tudo, o nível de um saxofonista não se mede pelo que ele deixou pra trás na sua trajetória de estudos musicais. Pelo contrário, o nível se mede de verdade pelo que o saxofonista tem, atualmente, e só atualmente, debaixo dos dedos, ou seja, dentro de seu domínio atual. Seja em exercícios, seja em músicas, seja em capacidades expressivas, seja em qualquer recurso musical que tiver.
A diferença é o domínio que o músico profissional tem de tudo isso, e que o amador, apenas conhece superficialmente, a consciência do que se pode contar em termos de expressão musical por meio de uma simples escala natural, coisa que o iniciante não possui. É a mesma escala, porém, tocada de inúmeras formas, com inúmeras conotações, por meio de inúmeros efeitos etc. E isso faz com que um músico possa ser reconhecido de fato em relação aos demais que estão começando.
De forma alguma podemos desprezar o mínimo estudo que fazemos no sax, devemos fazer tudo, sempre, da melhor maneira que pudermos, com o máximo domínio que alcançarmos, pois tudo será utilizado, e o que não será utilizado não deve ser aprendido. A música possui um caráter cumulativo, sem essa consciência não conseguiremos jamais crescer.
Daniel Vissotto