Não, não venho propor que ao terminar este texto você estará lendo partituras pelos cotovelos sem nenhuma espécie de dificuldade. De fato as coisas não se dão assim, infelizmente, se eu fizesse essa promessa ela seria falsa.
O que eu proponho é que, ao terminar este texto você tenha diante de si um caminho definido, a consciência desse caminho, para que a partir desse momento possa percorrê-lo para obter, aos poucos, essa habilidade.
Ler partituras é uma arte, tocar partituras à primeira vista é uma arte também. Mas quando digo ler uma partitura não estou afirmando que você vai ler as bolinhas que lá estão escritas, de fato não é assim que se lê uma partitura, ao ler partituras não devemos ler nota por nota.
A leitura de uma partitura à primeira vista envolve um arcabouço de recursos anterior desenvolvido aos poucos pelo músico de forma gradativa num passo a passo. É algo que vem do mais fácil para o mais difícil, do alicerce para o cume do prédio.
O produto final disso, a alfabetização musical é que, quando lemos não lemos notas isoladas, mas associações de padrões desenvolvidos internamente com o que a partitura apresenta, as notas formam estruturas maiores, e quanto maiores as estruturas de nossa leitura mais rápida será nossa associação com o movimento do corpo no instrumento.
A alfabetização musical é como a construção de um prédio, não um prédio pré-fabricado, com peças já prontas para o encaixe, mas de um prédio de construção convencional, tijolo a tijolo. Entretanto, o produto final, a leitura musical, se dá por um conhecimento prévio e já estabelecido de estruturas internas associadas à partitura.
O que pretendo mostrar neste artigo é como se dá essa leitura musical final, e qual o processo pelo qual devemos passar para adquiri-la, o passo a passo pelo qual devemos trilhar para alcançar essa habilidade tão desejada pelos músicos, e que certamente nos abrirá tantas portas no mundo musical.
Garanto a todos que ao ler a palavra “casa”, sequer pensamos nas quatro letras de que ela é formada, estudos mostram que a mente humana, ao ler a palavra casa busca no seu arcabouço de memória interna essa palavra já estabelecida, e por isso temos a fluência quase que automática de associar a grafia dessa palavra como um todo ao som e à imagem da mesma de forma quase que automática.
Porém, se nos deparamos com uma palavra desconhecida, certamente pararemos para ler letra por letra, e não teremos a rapidez de associar o todo de sua grafia, com o som que a ela se refere, e também à imagem do objeto do qual estamos falando, esta que pode também ser desconhecida neste caso. Isso é o que chamaríamos de soletrar uma palavra.
O tempo que perdemos para ler uma palavra conhecida é quase zero, pois lemos o seu todo, já o tempo que perdemos para ler uma palavra desconhecida, uma palavra que não faz parte de nosso arcabouço interno de padrões pré-estabelecidos, é muitíssimo maior, pois temos de descobrir essa palavra, então acabamos por, num primeiro instante, soletrá-la, lentamente até compreendermos sua pronúncia em nossa língua.
A partitura musical tem essa tônica, pois a grafia musical tem tudo a ver com a grafia da língua em que falamos, no sentido de que, quando alguém alfabetizado musicalmente lê uma partitura, ele não está lendo nota por nota, mas palavras, frases, conjuntos de notas etc. Ou seja, estruturas maiores, que ele associa instantaneamente ao que deve ser feito no saxofone.
Há um conhecimento musical que é o conhecimento introjetado para a leitura, o que chamamos de prática do solfejo, e há também um conhecimento técnico do instrumento, que é o conhecimento que temos de memória muscular, está nas mãos do saxofonista por exemplo, ou seja, o desenvolvimento técnico que faz com que ele associe o que lê numa partitura ao que toca no saxofone.
Pianistas são os instrumentistas que geralmente mais lêem partitura de todos os instrumentistas. Conheci no passado um deles que lia uma página completa, a virava, e já ia lendo a próxima página enquanto tocava a anterior. É lógico que ele contava com uma memória fotográfica, porém, esse é o espírito da coisa, o segredo para ler rápido, quero dizer, não ler nota por nota, mas estruturas maiores.
E o que são estruturas? Uma estrutura é um conjunto de notas, começaríamos pelo conjunto de notas que forma um tempo, por exemplo, o que chamaríamos, em fraseologia musical, de célula. A célula poderia ser entendida como os diferentes padrões rítmicos recorrentes da música ocidental, os mais comuns, que formam entre si um tempo de duração, uma pulsação em suas subdivisões.
É importante desenvolver a associação imediata das células rítmicas para ter plena fluência musical, pois se formos ler nota por nota, estaremos equiparados ao leitor que se depara com uma palavra desconhecida e passa a lê-la letra por letra, soletrando-a como um analfabeto. Diante disso não devemos ler as notas da célula, mas a célula como um todo.
Não devemos ler as notas de uma escala, mas a escala como um todo, não devemos ler as notas de um harpejo, mas o harpejo como um todo, só isso, a compreensão dessas estruturas faz com que a leitura seja desmistificada sobremaneira, pois ao fazê-lo compreendemos porque alguns conseguem ler partituras extremamente complexas à primeira vista sem nenhuma espécie de dificuldade.
Essa associação se dá por meio de um trabalho de internalização de padrões estruturais. Quando batemos o olho na partitura, o cérebro rapidamente associa o que vemos a padrões já conhecidos, e esses padrões já conhecidos são expressos quase que automaticamente pelo músico tanto em termos físicos (pela boca, pela bater de uma palma, pelo bater do pé, pelo movimento de uma mão), quanto em termos práticos, no instrumento.
Ela começa sim com as células, e vai se desenvolvendo aos poucos para estruturas maiores. Um músico perfeitamente alfabetizado, capaz de ler partituras complexas à primeira vista, jamais está vendo notas por notas, ele está vendo estruturas enormes de leitura, e ele já desenvolveu um trabalho árduo de internalização dessas estruturas tanto em termos mentais, quanto em termos de coordenação motora de seu instrumento.
Esse trabalho de internalização deve ser gradativo e lento, bem enraizado, passo a passo, agora sim, tijolo por tijolo. É interessante de se notar que uma partitura musical não é uma informação única, mas um conjunto de informações disposto em diversos andares. O andar rítmico, o andar melódico, o andar harmônico, a confluência de dois ou três desses fatores, a confluência de duas melodias, de duas sequências rítmicas que se dão ao mesmo tempo, o conjunto disso com a levada harmônica etc. o estilo, o tom, a escala, a clave, a fórmula de compasso etc.
Quando vemos uma partitura há um prédio enorme diante de nós, com andares de informação que se dão ao mesmo tempo e que não podem jamais ser compreendidos imediatamente do nada, de forma gratuita, apenas pela compreensão de um princípio pelo qual deciframos essas informações.
Mas como devemos entender esse prédio, todas essas camadas de informação? Tendo a humildade e a paciência de encontrar cada um dos andares, separá-los, decompor o prédio, as camadas desse prédio, e isoladamente trazer à plena luz um trabalho de compreensão de cada uma dessas camadas em separado, para o posterior ajuntamento das mesmas, aos poucos, acrescentando elementos aos poucos.
Muitos alunos não possuem essa humildade, e ao verem alguém lendo partituras com facilidade, querem agir da mesma forma, lançando-se à uma complexidade que lhes é absurda e intransponível, o que fará com que eles acabem por desistir dentro de pouco tempo em desânimo por não ver nenhuma forma de desenvolvimento musical nessa empreitada, pelo contrário, o que verão será frustração sobre frustração.
Decompondo essas camadas de informação, os andares do prédio que é uma partitura teremos a quebra da dificuldade em estruturas mais simples e mais fáceis, passíveis de serem transpostas. E isso não é uma característica de alguém com uma debilidade qualquer, uma dificuldade intrínseca e própria de uma só pessoa, mas é uma característica universal de todos nós, todos nós que queremos, de fato, ler partituras como tem de ser, temos de nos submeter a esse processo, sem o qual não é possível compreender e executar as várias camadas, os vários andares de informação que uma partitura representa ao mesmo tempo.
O trabalho de internalização de padrões que nos permitirão ler uma partitura por estruturas e não nota por nota, ou seja, estruturas musicais e não cada ínfima e pequena informação de cada vez, é um trabalho árduo que se dá ao longo de um bom tempo de treinamento. Começando por pequenas estruturas mentais elementares, e por sua reprodução com a boca, com a palma, com o mover dos pés e das mãos etc. numa mentalização da organização sistemática musical.
Paralelamente a isso devemos desenvolver nossa coordenação motora para a execução disso, dessas células, palavras, frases etc. no instrumento de forma automatizada, por uma memória que não se dá na cabeça, pelo fato de que já foi introjetada, uma memória muscular que está na mão, no dedo, no abdômen, na língua, na boca do saxofonista. E esta segunda habilidade, a habilidade técnica no instrumento tem de nos proporcionar a fácil execução daquilo que entendemos na mentalização, pois sem a habilidade técnica para a execução, a habilidade mental é inútil e será facilmente esquecida.
Tudo isso se dá na construção de um caminho passo a passo, do extremo simples para um gradativo aumento da dificuldade até chegarmos no extremo complexo. Pois sem essa sedimentação dos alicerces do prédio jamais teremos um edifício que verdadeiramente pare em pé. Esse é o trabalho que nos vai trazer padrões internos que nos permitam ler uma partitura não mais nota por nota, mas na compreensão mental e técnica de estruturas maiores que nos dêem uma habilidade real e verdadeira para poder ler o que for à primeira vista de fato.
Estudar uma música apenas pelo ouvido, pela intuição, pela simples imitação é algo muitíssimo superficial para quem quer de fato entender e viver a música em toda a sua profundidade. Antes disso devemos construir um prédio que tenha um alicerce sólido, do simples ao complexo, da reprodução física à execução no instrumento, de uma simples nota a palavras musicais, e posteriormente a isso a estruturas cada vez maiores que nos permitam finalmente ter uma rápida e satisfatória leitura musical.
Daniel Vissotto