Como Entender o Tempo Musical

O mais antigo instrumento artesanal já encontrado na face da terra é uma flauta de osso de ave, descoberta numa caverna da Alemanha, esta que foi entalhada há cerca de trinta e cinco mil anos, o que nos mostra que os homens das culturas primitivas da humanidade, além do gosto especial pela caça, tinham também sua veia artística e musical desenvolvida.

Não creio que seja à toa que o instrumento musical mais antigo a ser encontrado pela humanidade seja um instrumento melódico, creio eu a música é mais facilmente compreendida pela melodia, pois sem ela tudo se torna muito abstrato, e não temos uma idéia básica do que seria a música.

Pela experiência que tenho de mais de dez anos dando aulas de saxofone, percebi que os iniciantes ao adentrar neste instrumento entendem os três conceitos básicos da trama musical (melodia, ritmo e harmonia) na seguinte ordem, primeiro a melodia, depois o ritmo e por último, depois de um bom tempo de estudo, a harmonia.

Porém, mesmo que não queiram, o ritmo está presente na melodia e na harmonia, uma melodia sem ritmo definido nada é, uma harmonia sem ritmo não se constrói, já o oposto não é necessariamente verdadeiro, de forma que o ritmo, dos três grandes elementos da música é o mais decisivo, e o mais importante, pois determina todos os demais, ou seja, sem o ritmo não teremos condições de executar melodias e nem harmonias corretamente.

Durante todos esses anos dando aulas me deparei com casos musicais de todo tipo, porém, a dificuldade rítmica é uma dificuldade muitíssimo comum entre os alunos, objeto de desistência de muitos, porque mal compreendida pelos professores em geral, e que pode ser facilmente superada se soubermos realizar um trabalho paciente de conscientização, coordenação e posteriormente de precisão rítmica.

Um grande número de alunos tenta aprender o ritmo de uma forma intuitiva, quase que inconsciente, apenas reproduzindo o que se ouve, sem saber exatamente de onde vem, ou o que está de fato fazendo. Surge então a necessidade de uma referência rítmica muito evidente, presente e recente, quase que como uma guia, pois caso contrário se perde a idéia do que fazer diante das figuras rítmicas musicais.

Esse tipo de aprendizado, o que ignora a organização matemática dessas figuras, não reflete em aprendizado concreto, pois facilmente é esquecido, torna-se um aprendizado baseado unicamente na experiência de uma única música específica e não na compreensão universalizada da linguagem musical que pode e deve ser abstraída para inúmeras músicas e exercícios.

Neste aprendizado perceptivo não se desenvolve aquilo que julgo mais importante para o aluno que inicia musicalmente, a saber, a consciência rítmica, que é de fato a compreensão matemática das relações proporcionais entre as figuras rítmicas, notas, pausas, ligaduras, pontuações etc. e todo tipo de células presentes na expressão musical como um todo. Sem essa consciência tudo é muito intuitivo, efêmero e inconsciente, de forma que não há o real aprendizado musical, a real alfabetização musical à qual quero me referir.

Voltando-se para o que se aprende em geral na música em termos de ritmo, temos um arcabouço conceitual muito grande, porém, abstrato, distante da concretude da coisa em si mesma que é o ritmo musical. Pois o ritmo não é um conceito puro e simples, mas algo concreto presente no mundo, com sua espacialidade e possui referenciais muito precisos aos quais devemos recorrer para a plena compreensão do que de fato estamos falando quando mencionamos a palavra tempo.

O ritmo possui sucessividade de sons, e simultaneidade dos mesmos, e às vezes essas duas coisas misturadas, como podemos observar, por exemplo, nas batidas dos estilos africanos de música, riquíssimos em figuras rítmicas, a idéia que temos nessas músicas características é a de que não há um momento sequer, onde possamos colocar um alfinete que seja no qual não há pelo menos um tambor, ou algo parecido, soando sozinho ou em conjunto com outros sons.

Essa sucessividade possui uma espacialidade, não é um conceito abstrato como o um, o dois, o três. Pois não sabemos o que é o um, o dois ou o três em si mesmos, a não ser que os apliquemos a algo concreto do mundo em que vivemos, como por exemplo, uma, duas ou três maçãs. Nesse momento o um deixou de ser um conceito abstrato e incompreensível em si mesmo e passou a ser algo de concreto, que podemos visualizar, pegar, e por fim, o que é mais importante para o que estamos procurando na música, sentir.

O tempo musical possui uma espacialidade, não é à toa que Pitágoras se inspirou no movimento, e a palavra é exatamente essa, movimento espacial, das esferas celestes, para definir as primeiras notas da cultura ocidental, é a partir de uma espacialidade que se entende o ritmo, de um movimento no espaço, daí é inevitável a lembrança certa da definição aristotélica do tempo, a saber, o número do movimento, de modo que o tempo mede o movimento no espaço, podemos dizer assim que o tempo vem do espaço, e ele se movimenta.

O tempo musical está no mover de uma mão que bate palmas, no subir e no descer das mãos de um maestro, no tocar de duas mãos, no afastar das mesmas. O tempo não é uma simples pulsação que se dá no mesmo ponto, ele é horizontal, se dá um após o outro, no espaço, construindo uma linha horizontal que se desenha diante de nossos olhos, como os pulos de um coelho em direção de seu alimento, como o desenrolar de um novelo que separa dois terrenos espaciais.

É interessante de se notar que as pessoas que mais entendem do ritmo são pessoas que dançam, pois não é possível dançar corretamente sem ritmo, e dessa forma temos que o ritmo está no corpo humano, nos movimentos do quadril, das pernas, dos passos, dos braços, da cabeça, etc. Tudo isso é movimento, tudo isso se dá no espaço, tudo isso é tempo. O um e o dois se unem à concretude da maça, ou seja, em nossa linguagem musical o um e o dois se unem à materialidade do movimento espacial, e encontramos assim o referente e o referencial do tempo musical.

Num instrumento musical não devemos entender o tempo como um número puro e simples, afinal de contas sabemos que no compasso de quatro por quatro a colcheia vale meio, mas o que de fato é meio tempo? Alguém já viu o tempo? Alguém já viu o meio? E ainda, o que é mais complicado, alguém já viu o meio tempo? Tudo isso é muito conceitual demais, demasiadamente abstrato para ser considerado e entendido pelo cidadão comum que quer tocar, que quer ouvir a melodia soar pura e simplesmente.

Não poucas vezes o que temos nesse momento em que esses entes matemáticos abstratos são apresentados aos alunos é uma desistência pura e simples, ou ainda, a busca de uma música intuitiva, inconsciente, que apenas reproduz sem saber o que faz, sem entender onde está, sem perceber como reproduzir o mesmo raciocínio para uma outra situação semelhante, de forma que há um aprendizado empírico e específico que não se aplica a nada a não ser àquela situação em si, e que, por ser efêmero e depender de uma memorização imediata, logo se perde.

Porém, quando há a compreensão do tempo como movimento concreto no mundo espacial, como movimento do objeto observacional, ou ainda de uma corporalidade concreta no mundo em que vivemos, passamos a ter a compreensão de um referencial ao qual essas palavras se referem, de forma que a compreensão começa a se revelar ao entendimento.

De forma que na música, e mais especificamente no saxofone, o tempo é definido pelo movimento do dedo, da língua, dos músculos do abdômen no controle da coluna de ar, pelo agitar dos pés, entre outros inúmeros fatores que englobam a execução musical de um saxofone. E isso serve para todos os instrumentos, que possuem suas características motoras, de forma que o tempo está todo ele associado à coordenação de movimentos corporais do músico na espacialidade mundana.

É disso que temos de ter consciência quando vamos entender o tempo, não há temporalidade sem coordenação motora, e a destreza na coordenação motora se adquire pela repetição. Primeiro a compreensão espacial do tempo e matemática associada a ela, ou seja, aquilo que chamamos de conscientização rítmica, depois disso a preocupação em alcançar a coordenação motora para um aceleramento do reflexo do movimento corporal ao qual corresponde o tempo, automatizando-o e o acelerando aos poucos.

Por último entramos com a compreensão da precisão rítmica, ou seja, a percepção sonora de uma pulsação precisa e constante, como num relógio, e também, por fim, o sentimento de uma aceleração e de um retardamento, dependendo da situação em que estamos numa música. Tudo isso é a compreensão do tempo musical.

Conceitos abstratos de nada adiantarão para essa compreensão, de forma que precisamos desenvolver a consciência rítmica, a coordenação motora, e por fim a precisão de pulsação para termos de fato a capacidade de dividir uma partitura como tem de ser, e extrair da mesma uma sensação musical concreta que venha de fato a nos emocionar e a todos ao nosso redor com nosso instrumento musical.

O verdadeiro músico alfabetizado musicalmente, ou seja, aquele que sabe ler, consegue extrair de uma partitura, quase que imediatamente, o que ela quer dizer em termos musicais, e esse é o objetivo da leitura musical. O tempo em si mesmo é como um número, ele não existe, o que existe é a concretude do mundo real do qual fazemos parte, com seus referentes e referenciais.

Uma partitura não é formada de abstrações vazias como meios, inteiros, partes, números, mas de movimentos corporais que correspondem a sons, e sons que correspondem a sentimentos humanos localizados na alma humana, de modo que na duração musical em si mesma, já há um sentimento definido, daí concluirmos que o tempo, compreendido dessa maneira, forma que nos permite encontrá-lo diante de nossos olhos, já é uma música.

Daniel Vissotto

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