Quando nascemos, o mundo ao nosso redor não nasce conosco, ao nascermos o mundo à nossa volta já existe, já está lá, presente, impávido e pleno.
Todos nós, ao nascer, fomos impactados com força de uma tradição cultural. Ao soltar um grunhido em direção à nossa própria mãe, ouvimos a suposta frase em português (ou ainda, na nossa língua mãe): é a mamãe.
De certa forma, a influência do nosso entorno ocorre em nós diretamente desde o primeiro instante de existência. Estamos em constante contato com algo que nos toca e que é tocado por nós, uma dialética inevitável na qual construímos nossa existência.
Do mesmo modo que o mundo nos influencia em todos os sentidos, nós também temos o poder criativo de influenciar o mundo, não somos produtos diretos e mecânicos da influência externa, mas também não somos agentes independentes da mesma.
O aprendizado de um instrumento musical não nasce em nós, nós não criamos o som do saxofone, não criamos as frases de um estilo, não criamos o que produzimos musicalmente a partir do zero. Quem cria a partir do zero é o próprio Deus, nós nos referenciamos.
Nem mesmo uma composição musical é algo que parte do zero, ela sempre se insere numa tradição, num estilo, e numa história, por mais que haja a proposição de algo novo, sempre este algo estará em diálogo com aquilo que nos construiu no mundo ao redor.
Para saber o que é o som de um saxofone, nós certamente ouvimos um ou mais saxofonistas. Para compreender a magia deste instrumento, nós invariavelmente fomos enfeitiçados por alguém que já tocava e que por sua vez também foi influenciado por alguém.
É notório que este instrumento, diferentemente de outros, foi criado a partir da iniciativa de um só homem, no entanto, ao criar o saxofone ele o fez pela influência de outros instrumentos, há quem diga que a grande intenção do saxofone seria ter um pouco de madeira, metal e arco num só instrumento. Ora, isso já existia antes dessa criação.
A maneira pela qual concebemos o timbre de nosso saxofone passa inevitavelmente pelo processo de referenciação. Há uma linguagem chamada “som de saxofone”, que é diferente do som de uma trompa, por exemplo, é nessa linguagem que devemos nos referenciar para produzir e moldar nosso próprio timbre de sax.
Há uma história a se reverenciar atrás de nós, estamos apoiados nos ombros de grandes saxofonistas que passaram pelo mundo e que fizeram por bem construir a sonoridade e a concepção própria a este instrumento.
Em hipótese nenhuma podemos, por qualquer motivo que seja, jogar tudo isso para o alto, e nos pôr a construir, nós mesmos, um som supostamente e ironicamente independente. Mesmo porquê isso seria impossível. Além de impossível, nessa suposta hipótese soaríamos como tudo, menos como saxofone.
O timbre depende de vários fatores, sim, o setup influencia o timbre de um saxofonista, não é à toa que alguém escolhe tocar com uma boquilha de metal, e outro escolhe tocar com uma boquilha de massa, ao escolher nosso setup estamos inevitavelmente buscando com ele produzir um determinado timbre.
Entretanto, o que venho falar neste texto não é sobre setup, ninguém precisa de um setup milionário para soar como saxofone, não obstante, muitos possuem um setup caríssimo e não conseguem soar de maneira impactante. Embora o setup seja um dos fatores que constrói o timbre, ele não é o único e nem o decisivo.
É importante ressaltar que tudo tem limites, não é possível ter timbre de saxofonista tocando numa trompa, para soar como saxofone temos de tocar naquilo que podemos minimamente chamar de saxofone, chega um ponto que o setup é necessário e inevitável, o setup além de facilitar a projeção de determinado timbre é algo que define sua característica, porém, não é tudo.
Há outros fatores englobados no timbre, como por exemplo a concepção sonora que construímos ao longo de nossos estudos em nossa história pessoal, a anatomia de cada um no que toca ao formato da boca, da garganta, dos lábios, do dente, a quantidade de ar que temos disponível etc. Há também a configuração conjuntural do som, formada pelo clima, pelo estado de espírito, e pelo momento histórico de cada um.
Quando estudamos o saxofone, devemos nos preocupar em moldar nosso timbre, sempre. O timbre é como uma escultura, algo que estamos lapidando a todo momento com nossa embocadura, nossa projeção de ar, a posição de nossa língua, a abertura de nossa cavidade bucal, a colocação de nossa boca na boquilha entre inúmeros outros fatores, que têm por si só uma influência tremenda na qualidade do timbre que produzimos.
Temos diante de nós um laboratório infinito de experimentos, no qual o setup é apenas mais um fator, importante, porém não único e nem decisivo. Esses outros fatores têm de estar sob nossa constante formulação e teste, e para tanto devemos nos ater a referências de nossa tradição musical em termos deste instrumento.
Referenciar é diferente de imitar, a imitação é sem dúvida parte do processo de referenciação, porém este não se resume àquela. Ter referências musicais significa absorver, internalizar, processar, modificar, testar, conceber e produzir. Ainda que não tenhamos consciência, é impossível que não passemos, mesmo que em parte, pelo processo de imitação.
Resumir-se à imitação é algo de degradante, por que eu iria ouvir a imitação se tenho possibilidade de ouvir o original? Ou seja, a imitação já nasce por si só morta. Ninguém deve imitar saxofonistas para produzir o seu som, no sentido de que não devemos nos resumir a algo que não tem fruto algum em si mesmo.
Devemos sim nos referenciar em saxofonistas, nosso timbre é construído a partir de referências, um saxofonista sem referências é um saxofonista sem linguagem, fala tudo, menos saxofone, é preciso se inserir numa tradição, dialogar com essa tradição, saber em qual escola estamos, para que, em meio a isso, possamos falar nossa própria linguagem.
Há muito o que se aprender com as grandes referências do saxofone, tanto em termos de timbre, quanto em termos de estilo, fraseado, posicionamento musical, comportamento etc. Não podemos jogar fora a história ao nosso redor, eu particularmente sempre aprendo com os grandes, sempre estou moldando o meu som, sempre estou em evolução e nisso procuro encontrar o meu progresso.
Sim, todos somos únicos, mas não estamos sozinhos.
Daniel Vissotto