Quando era adolescente eu me encantei com a música de Milton Nascimento. O famoso falsete de Milton era um dos sons mais belos que ouvia até então.
Porém, aos poucos, outro som foi ganhando importância maior pra mim, o de um instrumento específico que foi me chamando a atenção cada vez mais, quero dizer, o saxofone.
Sempre pensei que eu era meio ruim de ouvido, minha saudosa mãe tirava todas as músicas de ouvido com facilidade, e eu ainda não conseguia fazê-lo, embora tentasse muito.
Com o passar do tempo fui me deparando com minhas dificuldades de percepção, e as superando aos poucos, lembro-me que, quando estudava no Conservatório de Tatuí me esforcei demais por isso.
Cheguei até mesmo a ficar uma viagem inteira ouvindo a mesma nota no velho walkman que eu tinha (um aparelho que toca fitas K7, se é que alguém lembra o que é isso) para conseguir lembrar do seu som.
Ouvi tanto a nota que, após essa tortura chinesa, comecei a identificá-la no piano e no saxofone. Foi algo meio louco que fiz, algo que ouso dizer não deve ser feito, porém, expressa a vontade de aprender e de tocar que eu tinha.
Aos poucos as coisas foram se desdobrando pra mim na questão da percepção. Foi um tanto difícil de início, até traumático, mas eu não me intimidei com nada, eu acreditei que podia, e segui em frente sem muita orientação de ninguém.
Consegui tirar a minha primeira música no piano, sim, no piano, eu comecei no piano antes do saxofone, embora sempre quisesse tocar o sax.
Aos poucos fui aprendendo a associar os sons a sensações psicológicas minhas. Por exemplo, a nota fundamental de um acorde, eu associava ao sentimento da paz e do conforto, a um homem em pleno domínio de sua função.
Comecei a perceber que as notas e acordes tinham sentimentos embutidos neles, não eram simplesmente sons aleatórios. Consegui identificar muitos desses sentimentos, e o porquê de um autor escolher esta ou aquela nota, este ou aquele acorde ao compor uma música.
Por exemplo, o sentimento de movimento eu associei ao segundo grau da escala maior, ou ainda, ao segundo acorde do campo harmônico maior. Sempre que ouvia esse acorde e essa nota eu sentia como se estivesse me movendo.
De repente, percebi que, embora houvesse inúmeras possibilidades na música, apenas uma delas, dentro da tonalidade, era a sensação de movimento. Foi como encontrar ouro em meio a um mar de pedras.
Foi quando eu percebi que não devia decorar letras, notas, conjuntos de notas, ou qualquer espécie de dado morto para poder tocar uma música. Pelo contrário, eu devia apenas sentir que havia ali a tal sensação de movimento.
Sempre que ela aparecia, não importando qual o tom, ou seja, sempre que eu estava no segundo grau da escala maior, ou no segundo acorde do campo harmônico dessa escala, eu sentia essa sensação.
Esta simples abstração tirou um peso das minhas costas. Decorar letras, notas, acordes, conjuntos de notas, dados sejam eles quais forem independente de sentimentos internos, como se fossem uma lista morta não nos faz saber como tocar de ouvido.
Pelo contrário, são os sentimentos vivos de uma música, a maneira como nos associamos a eles, que nos fazem tocar uma música de ouvido, e até mesmo decorá-la. Pois aí não dependemos da memória, mas da percepção em si, o que facilita em grande medida a tarefa.
Subitamente a coisa fez sentido pra mim, e comecei, na minha ingenuidade, a associar sons a sensações psicológicas minhas. Tal acorde me faz lembrar tal época da minha infância. Tal nota em meio a tal acorde me traz um déja vu de tal momento da minha vida.
E esse trabalho estou fazendo até os dias de hoje, com cada vez maiores detalhes, vez por outra me concentro mais ou menos nessa empreitada, porém, sempre estou nessa busca, pois ela me facilita muito a execução musical.
Não há necessidade de decorar dados mortos (nomes, letras de acordes, matemáticas, palavras, notas, componentes de uma cifra etc.), o que temos de fazer é puramente sentir a música, e associá-la àquele trabalho prévio de sensações psicológicas vinculadas aos sons específicos e à sua função na música.
Por exemplo, o acorde de ré menor, no tom de do maior, traz a sensação de movimento pra mim. O acorde de sol maior, no tom de do maior, já me traz a sensação de problema, seria como se eu estivesse dando um pulo e aguardando o desfecho disso. Já o acorde do do maior no tom de do maior, me traria um sentimento de paz sem igual.
Percebi que isso se traduz em todos os tons, não é à toa que um compositor escolhe este e não aquele acorde, não é à toa que a música expressa o sentimento de alegria ou tristeza, nostalgia ou superfluidade. E assim por diante.
Os grandes idealizadores das músicas associam os sons a sentimentos, e expressam sentimentos específicos através desse sons. A música em si não se trata de infinitos sons aleatórios, mas de sentimentos específicos associados a sons precisos que os expressam.
A gama de sons específicos que expressam sentimentos na música ocidental não é tão extensa, embora a quantidade de coisas que sentimos através dela seja cada vez mais detalhada e rica à medida que a conhecemos e nos aproximamos dela.
Quando conseguimos discernir, de acordo com nossa idiossincrasia própria, ou seja, com nossa característica particular, esses sentimentos, e os associamos também aos sons que determinada música propõe, temos a compreensão de um som como uma sensação psicológica.
No que deve estar focada nossa percepção? Na memória de dados aleatórios e mortos, como por exemplo a letra C, e depois a letra G, e assim por diante? De forma nenhuma!
Nossa percepção também não deve estar focada nos sons em si mesmos, pois tudo é som, e se nos concentramos no som em si, o que temos é um mar de sons indiscriminados que nada expressam.
A verdadeira percepção deve focar sempre, invariavelmente, no sentimento, na sensação, no valor psicológico que um som nos traz ao coração. Esse sentimento está presente em todas as tonalidades de uma forma muitíssimo semelhante.
Quando fazemos assim, o que ocorre é que conseguimos abstrair de uma infinidade de dados intransponível, apenas alguns sentimentos definidos que temos em função de determinados acordes, notas, e sons. Isso em si torna a música absurdamente mais fácil de reconhecer.
A percepção não é de sons puros, não é um martelo numa corda de metal, é a dor de alguém que perdeu um filho, é a alegria de uma mãe que vai dar a luz. Não é o vibrar e uma palheta de bambu numa boquilha de metal, mas o feitiço inigualável do sax.
Devemos sempre associar os sons a sensações, não é à toa que uma determinada música expressa psicologicamente algo específico para nós e não outra música, expressão esta de algo do mundo, do interior, do tempo ou o que seja. Não à toa preferimos esta àquela música.
A história de alguém, os sentimentos experimentados, as crenças de cada qual, a dor vivida, a alegria expressa, as pessoas que nos cercam, os lugares que passamos, as coisas que temos ou que deixamos de ter etc. Tudo isso deve estar associado aos sons.
A verdadeira percepção musical não percebe sons, mas sensações psicológicas próprias da individualidade de cada um. Quando vamos tirar uma música de ouvido é nisso que devemos focar, quando vamos compor uma música, é isso que temos de ter em vista.
A música não é barulho harmonizado, mas vida, uma vida que transborda, que está nas coisas, no mundo, no nosso cotidiano, na nossa história, em nosso coração.
Os timbres, as notas, os acordes, a conjunção de todos os fatores musicais, os ritmos etc. Tudo isso é uma linguagem humana tanto quanto a fala, expressam sentimentos internos, objetos externos, sensações múltiplas que devemos procurar identificar.
Fazendo assim teremos muito mais significado naquilo que executamos em nosso instrumento, um grau de expressão inimaginável, encantaremos as pessoas com cada movimento nosso na música.
A percepção musical está muito acima da mera compreensão racional de dados aleatórios e mortos. Urge para todos nós a necessidade de olhar para a música com os olhos do coração e ver com eles o universo aberto que a música nos traz.
Fazendo assim conseguiremos, por meio dessas associações específicas, identificar e perceber os sons em seus detalhes, captando com muito maior facilidade onde estão e o que significam, e como poder assim executá-los com maior certeza e segurança.
Comece já a associar os sons às suas sensações psicológicas próprias de sua característica particular, fazendo assim encontrará o caminho para não mais errar quando quer tirar uma música de ouvido, decorar uma música, expressar-se por meio de uma improvisação, ou ainda compor algo novo, dentre outras habilidades.
Esta é uma das maiores dicas que posso dar a respeito da percepção musical.