Quando falamos de ler uma partitura temos de ter em mente que nunca, nunca mesmo uma convenção de signos matemáticos e gráficos expressará a complexidade do sentimento humano em termos de expressão musical.
A partitura é um registro, o sentimento musical é outro, de forma que todo aquele que toca uma partitura deve antes de mais nada ter em mente que precisa acrescentar algo àquilo que está escrito, e esse algo é um fator de vida, de musicalidade, que não está presente no que está lá.
Miles Davis tem uma frase muito interessante: “não toque o que está lá, toque o que não está lá.” A princípio parece uma grande transgressão, porém, de fato, numa execução musical, principalmente no que toca à música popular, o que importa não é tocar o que está na partitura, mas tocar o que não está nela, no sentido de que temos de acrescentar algo nosso, algo que vem de nós mesmos em direção à música, e não da partitura em direção a nós.
Mas o que Deve ser Feito?
Seria como imprimir uma digital na música, executar a música com o tempero de quem está tocando, como se a música fosse uma composição instantânea de quem toca, uma obra particular. Não falar a música como se fosse uma fala alheia, mas incorporar a música, sentir a música, e interpretá-la (e a palavra aqui é essa mesma) como se fôssemos nós mesmos os autores naturais, legítimos e instantâneos da mesma.
A espontaneidade é o caminho principal, tocar como se fosse eu, e não outro, imprimir o que uns chamam de assinatura, digital, marca, nome, personalidade, algo verdadeiramente vivo e atuante na música em questão. E não executar a música como quem passa um recado morto, uma mensagem que não nos pertence, e que lemos como um bilhete que nada tem a ver conosco.
O objetivo final é transmitir o sentimento. E o sentimento tem a ver com as coisas da vida, sentir a tristeza de uma música como sua, expressar a alegria da melodia como atual e vívida, expressar a expressão musical como parte de nós mesmos, de nossa história, de nosso interior, de nosso pensamento e tudo o que diz respeito a nossas entranhas espirituais ou físicas.
Porém, quando falamos assim a coisa se transforma em algo de subjetivo demais, algo que não pode ser expresso em teoria. De fato é, porém, precisamos aproximar isso o máximo que podemos de uma linguagem objetiva, para que quem não tem experiência sobre o assunto, possa entender e começar a praticar. Uma linguagem provisória, objetiva, que nos indique o caminho para depois disso, cada um encontrar a própria saída.
A Interpretação e a Teoria
Há uma diferença entre teoria e subjetividade, entre técnica e interpretação. Quando falamos que em determinada fórmula de compasso tal nota vale meio tempo, não podemos jamais dizer que tal nota possa valer dois tempos, isso estaria de fato objetivamente errado, pois pertence ao campo da teoria. Porém, quando falamos que neste ponto e não noutro da música devemos usar uma apogiatura, não podemos nunca falar disso como algo exato, objetivo e inevitável, pois de fato, há um fator subjetivo na coisa, um fator de interpretação.
Quando teorizamos a interpretação será sempre como engarrafar o ar, o ar tem a forma que ele desejar, porém, tentar engarrafar o ar sempre será algo subjetivo à garrafa que fizermos, não há necessidade de ser de tal ou tal forma, pois a forma depende do gosto de quem faz, essa é a dificuldade de teorizar a interpretação, o que é necessário, porém até mesmo paradoxal.
Voltando um pouco, partitura é algo objetivo, tantos tempos para tantas notas, notas articuladas e ligadas, tudo isso é objetivo, porém, a música, em última instância é um grito idiossincrático a cada alma de cada intérprete, de forma que a partitura choca com a música nesse sentido, e é justamente nesse ponto que precisamos acrescentar algo de nós mesmos naquilo que está escrito.
Quem Deve Interpretar?
A verdade é que a interpretação não é algo que deve ser praticado apenas por músicos mais experimentados. De forma alguma devemos pensar assim. Há muitos professores que entendem a musicalidade como uma escada de dois grandes degraus muito bem marcados.
Ou seja, primeiro uma espécie de matemática objetiva, e depois a valorização do sentimento subjetivo, como se uma coisa atrapalhasse a outra, como se uma coisa fosse prejudicial à outra, e fosse necessário tocar durante muito tempo (talvez anos a fio) de forma engessada e matemática para depois disso (se o músico conseguir chegar até lá) arredondar isso e interpretar a música propriamente dita.
Não sou desses que acreditam que a música possui esse tipo de degraus, acredito pelo contrário que a musicalidade e a interpretação em si mesma deve ser trabalhada desde o início. Sim, há etapas a serem cumpridas, porém, elas dizem respeito aos elementos acrescidos à interpretação e não à interpretação em si mesma, de forma que é preciso, desde o início, praticar musicalidade, sentir, e expressar subjetivamente o sentimento próprio na música que tocamos.
Toque o que Está Lá e o que Não Está Lá
Sim é preciso tocar o que está lá, é preciso saber tocar o que está lá para poder tocar o que não está lá, porém, não são duas etapas alheias uma à outra, de uma sucessividade longínqua no tempo, mas sim etapas complementares e simultâneas, que se acrescentam e se completam. Mais do que nunca, acredito que a interpretação, não com as mesmas armas, porém, sempre presente, deve ser praticada desde o início do aprendizado musical.
Antes de mais nada quero dizer que a interpretação possui elementos, e esses elementos estão dispostos em fases sucessivas, porém, a interpretação em si mesma, com as armas que nos estão dispostas até o momento, deve se dar desde o início, com cada vez mais amplo espaço para movimento, cada vez maior arcabouço de recursos de expressão, cada vez mais presente número de possibilidades subjetivas de externar o violento grito interior.
Quando começamos no saxofone, temos o desejo muito claro de exprimir uma sensação musical, e isso nos é muito importante. Em meu canal no YouTube me importo com esse sentimento do iniciante de uma forma toda especial, com vídeos lúdicos procuro transmitir isso ao aprendiz, para que ele possa encontrar, logo nos primeiros passos, a possibilidade de tocar e de se expressar musicalmente.
Para você que quer começar certo no Saxofone, aqui um parêntesis, você que tem uma preocupação de divertir-se e também ter efeitos positivos no sax, recomendo o Curso Viva o Sax Básico, que tem a preocupação tanto de trabalhar melodias, quanto a de trabalhar a sonoridade do sax, para um som belo em meio a melodias interessantes.
Voltando à maioria dos músicos que aprendem sozinhos, devemos dizer que tocar músicas não é tudo. Surge também a necessidade de se tocar uma música de forma bela, e depois mágica, e depois como os grandes, e depois de forma própria e particular que venha a impactar a tudo e a todos ao seu redor. Tudo isso são fases do aprendizado, pois a exigência que nos é imposta por nós mesmos é cada vez mais intensa, ter uma simples sensação musical em pouco tempo já não é mais suficiente, de forma que devemos evoluir, para o belo, para o mágico, para o grande, e também para o próprio e particular, se é que me faço compreendido.
Para que isso aconteça há todo um desenvolvimento técnico que é necessário. Os fundamentos do saxofone precisam ser alcançados, entre eles coisas como estabilidade de embocadura, afinação, coluna de ar, flexibilidade, respiração, homogeneidade tímbrica, sonora, rítmica, uma digitação limpa e uma articulação clara e distinta, uma capacidade mecânica, o controle da intensidade do som, tudo isso é necessário para o saxofonista tanto executar uma música quanto interpretá-la, de fato, sem isso nada é possível na música como um todo.
O Esqueleto da Interpretação no Saxofone
Há um esqueleto na interpretação musical, a carne é formada por aquela parte subjetiva, porém, o osso, o que sustenta essa interpretação é puramente técnico e objetivo, e sem esse osso, o que resta é uma execução que mais parecerá uma ameba sem forma, precisamos ter estrutura para podermos nos expressar, daí a necessidade de fazermos exercícios em todos os sentidos, daí a importância da repetição nos estudos musicais, pois o principal fator da conquista de uma técnica perfeita é a repetição.
Enquanto adquirimos essa técnica, é necessário saber aplicá-la, pois a técnica em si mesma é robótica, um computador pode tocar um saxofone com técnica, mas nunca o fará com interpretação de fato, a interpretação é um fator da alma humana, uma resposta aos sentimentos mais complexos da individualidade, da história, e da particularidade de cada um. Aos poucos vamos adquirindo um número de elementos que nos permitem aplicá-los à música como um todo, essa é a graça de aprender um instrumento musical, poder expressar a dor, a vitória, a morte, a luz, a vida, a frustração e todos os fatores subjetivos a cada um que formam o cerne da alma humana.
Como disse, teorizar a interpretação é o mesmo que dizer que vamos medir a forma do oxigênio, é algo paradoxal e impossível. Porém, ainda assim é necessário, caso contrário jamais conseguiríamos adentrar nesse mundo da interpretação, de forma que precisamos de exemplos, de teorias, de delimitações que nos permitam traçar mapas que nos façam entender, aos poucos, como executar um sentimento de forma usual. Sim, usual, pois o que temos na interpretação é o fator empírico do usual, ou seja, usa-se ou não usa-se, em tal ou qual estilo, fazer assim.
Os Elementos da Interpretação
Em termos básicos, os elementos da interpretação que mencionei são os seguintes: dinâmica, articulações, acentuações, variações melódicas e rítmicas, vibrato e os ornamentos (há outros, porém, estes são os principais). O iniciante não deve entrar em todos eles de cara, neste caso há uma ordem a ser cumprida que facilitará a construção desse edifício. Fazendo as coisas nessa ordem, nesse passo a passo, a coisa fica muito mais fácil de ser cumprida e alcançada.
Dinâmica
Dinâmica seria a capacidade de controlar a intensidade do som, desde o mais piano ao mais forte. É o principal fator do sentimento, controlar a dinâmica numa execução é algo que, por si só, já transformará a música numa obra de arte, fará com que passemos da água de uma interpretação robótica para uma execução mágica e sentimental. É preciso dominar a intensidade do som no saxofone. Para tanto, precisamos saber controlar a coluna de ar de forma a conseguir tocar dentro de um elevador sem estourar os ouvidos de quem nos acompanha, e também conseguir tocar diante de um edifício de vinte andares e ser ouvido por todos.
Articulação
A articulação é a arte de expressar com clareza todas as possibilidades de ligar, desligar, interromper, continuar, e usar a língua de todas as formas possíveis e imagináveis para tornar nossa execução mais clara. Não falamos só com vogais, mas também com consoantes, e no saxofone também é assim, precisamos aprender a usar a língua no saxofone para articular as notas de maneira apropriada a cada estilo, a cada música.
Acentuação
Já a acentuação é a arte de tornar umas notas mais importantes do que outras, até mesmo porque não podemos tocar uma música de maneira reta pura e simplesmente, correndo o risco de tornar nossa execução algo de simplório. O que precisamos fazer é hierarquizar as notas, colocar notas em evidência, criar climas, e clímax também, no sentido de encontrar numa música pontos de referência que nos permitam afirmar isto é mais importante do que aquilo.
Variações
Variações são elementos da improvisação agregados à interpretação, consiste no momento em que fazemos uso de mudanças melódicas e rítmicas que impomos à música sem perder a essência melódica dela mesma, no sentido de que, ainda com as variações impostas, possamos identificar que falamos de uma determinada música e não de outra. É importante saber produzir variações numa melodia, e para tanto é muito importante ter consciência harmônica, pois da improvisação surge a variação.
Vibrato
Embora alguns incluam o vibrato naquilo que muitos chamam de ornamento, acredito que o vibrato é um caso à parte, é preciso acrescer o vibrato àquilo que já falamos até então, porém, com moderação e bom gosto, não podemos fazer isso de qualquer maneira, o vibrato, geralmente é utilizado de forma comedida nas finalizações de frase, e também em notas mais longas no meio de uma interpretação. É algo que faz toda a diferença, porém, pende também para o piegas de forma muito fácil no caso do exagero. Muitas vezes a nota reta é mais interessante do que o vibrato, se usada de maneira inteligente.
Ornamentos
Por último temos os ornamentos, ninguém é obrigado a fazer todos os ornamentos, mesmo porque é muito difícil definir o que é o que nesse meio, a concepção dos ornamentos na música é algo de extremamente subjetivo a cada músico, a cada intérprete. A verdade é que cada saxofonista tem seus ornamentos preferidos, e os pratica com determinada frequência, o que lhe permite se expressar de forma satisfatória. Entre os ornamentos estão a apogiatura, o mordente, o grupeto, o glissando, o portamento, os bends, o split tone, entre inúmeros outros.
Acima de tudo é preciso ter técnica, é também preciso cumprir as etapas da interpretação aos poucos, e conseguir assim acrescer cada vez mais de riqueza aquilo que fazemos de nossas músicas. A digital do músico não se dá à toa, não é algo que brota da noite para o dia, é uma possibilidade que vem do estudo, do tempo, do conhecimento, e da dedicação voraz do músico na direção da conquista da magia do saxofone.
Daniel Vissotto